Ao longo dos meus mais de 15 anos atuando no mercado financeiro, vi muitos patrimônios construídos com esforço desmoronarem na terceira geração. O padrão é conhecido e até ganhou um ditado: “Pai rico, filho nobre, neto pobre”. Segundo um estudo clássico da Williams Group Wealth Consultancy, 70% das famílias perdem seu patrimônio até a segunda geração, e 90% até a terceira.
Mas por que isso acontece? E como evitar que o seu legado — ou o dos seus clientes — siga esse mesmo caminho?
A resposta começa com governança patrimonial.
O que é governança patrimonial?
Governança patrimonial é o conjunto de regras, práticas e processos criados para garantir a continuidade, proteção e crescimento do patrimônio familiar ao longo das gerações.
Mais do que uma estrutura jurídica ou financeira, ela é um instrumento de alinhamento entre membros da família, promovendo coesão, profissionalismo e longevidade. Engloba:
- Definição de papéis e responsabilidades (quem decide o quê)
- Regras para distribuição de lucros e acesso ao patrimônio
- Critérios de entrada e saída de familiares nos negócios
- Fóruns de decisão (como conselhos de família)
- Planejamento sucessório claro
Em outras palavras, é o equivalente a um contrato social familiar.
Analogias do cotidiano: um condomínio bem gerido
Imagine um condomínio residencial de alto padrão, com dezenas de unidades e milhões em patrimônio comum. Sem regras claras, sem síndico definido, sem assembleias ou prestação de contas, o caos se instala rapidamente: inadimplência, conflitos, depreciação dos bens.
Agora pense em uma família com patrimônio de R$ 50 milhões, sem governança. Quem cuida de quê? Como são tomadas as decisões? Os filhos têm voz? Existe plano para o futuro?
Assim como um condomínio precisa de regimento interno e administração profissional, a família também precisa de um modelo de governança para proteger o que construiu.
Casos reais e estudos
O banco suíço UBS e a PwC realizaram um estudo com 2.500 empresas familiares no mundo. Conclusões importantes:
- Apenas 18% tinham um plano sucessório documentado.
- As que possuíam estruturas formais de governança apresentaram crescimento médio 5x maior nos cinco anos seguintes.
Outro exemplo é o da Família Walton (fundadora do Walmart), que há décadas mantém um “Conselho Familiar” ativo, que define diretrizes estratégicas, coordena a atuação filantrópica e supervisiona os investimentos da holding familiar. Resultado? Mais de US$ 200 bilhões em patrimônio preservado e distribuído por diversas gerações.
A tríade do legado: riqueza, valores e relacionamentos
James Hughes Jr., referência mundial em governança familiar, propõe um modelo de preservação do legado que vai além do dinheiro. Ele defende a construção da governança sobre três pilares:
- Capital financeiro (ativos tangíveis)
- Capital humano (habilidades, talentos e bem-estar dos membros)
- Capital intelectual e emocional (valores, cultura e propósito)
Quando a governança é pensada apenas do ponto de vista financeiro, ela perde sua força. É preciso incluir conversas difíceis: quem vai liderar? O que fazer se alguém quiser vender sua parte? Como lidar com cônjuges e herdeiros?
Estruturas possíveis
Na prática, a governança pode se desdobrar em:
- Conselho de Família: fórum que reúne os membros para discutir o patrimônio e as diretrizes estratégicas. Costuma incluir representantes das diferentes gerações.
- Constituição Familiar: documento não vinculativo, mas de grande força moral, que estabelece os valores, regras e compromissos da família.
- Acordo de Sócios: especialmente quando há empresa envolvida, define regras de entrada, saída, sucessão e tomada de decisão.
- Holding Familiar: ferramenta jurídica que facilita a centralização e proteção de bens, com regras pré-estabelecidas para a sucessão.
Um exemplo ilustrativo
Vamos imaginar a Família Nogueira, proprietária de uma empresa de logística e dona de um patrimônio de R$ 80 milhões. O casal fundador tem três filhos, dois envolvidos no negócio e um que vive fora do país. Sem estrutura, os conflitos começaram:
- Divergência sobre distribuição de lucros;
- Filhos sem clareza sobre responsabilidades;
- Discussões sobre a venda da empresa.
Com ajuda de um consultor, criaram:
- Uma holding para centralizar os bens;
- Um conselho de família com reuniões trimestrais;
- Um acordo definindo remuneração e critérios de sucessão.
O ambiente melhorou, a empresa cresceu e, mais importante: a família se manteve unida.
Como começar?
A construção da governança patrimonial deve ser gradual e personalizada. Algumas sugestões:
- Comece com conversas estruturadas: quais são os valores e objetivos da família?
- Elabore uma carta de intenções ou constituição familiar;
- Formalize papéis: quem decide o quê?
- Traga especialistas neutros para ajudar na mediação e estruturação;
- Eduque os herdeiros sobre finanças, liderança e propósito.
Fontes e leituras recomendadas
- Hughes, James E. Jr. Family Wealth – Keeping It in the Family (Princeton, 2004)
- PwC & UBS. Global Family Business Survey (2023)
- Lansberg, Ivan. Sucessão em Empresas Familiares (Bookman, 2017)
- Harvard Business Review. What You Can Learn From Family Business (2012)
Conclusão
A falta de governança familiar não destrói apenas patrimônio — destrói relações, vínculos e legados. A boa notícia? Isso é perfeitamente evitável com estrutura, diálogo e orientação especializada.
Se você ou sua família ainda não deram esse passo, este é o momento. Afinal, construir patrimônio é um desafio. Preservar por gerações é uma arte.